Segredos de liquidificador
Nina Horikawa e Leonardo Gandolfi: a arte de comunicar mistérios
Falar de coisas que ninguém viu
Um papo com Nina Horikawa, estrela da Morel 15
“Falar de coisas que ninguém nunca viu”, “I know that imagining my man”, “Meu segredo, minhas armas de guerra”, “I wanna belong to the living”, “Minha impossível memória”, “Ponto cego, fio condutor”, “Estivemos sós e mudos” são os títulos das suas obras expostas na Morel 15. Fiquei feliz por você não apelar para o genérico e sem graça “Sem Título I, II, III”... Como você chega nesses títulos? Acho essa escolha de dar títulos às obras bastante complexa, porque tem o poder de ampliar a leitura da obra ou limitá-la. Dar a palavra, nomear, tem uma força muito grande. É delicado porque pode mudar a direção de tudo, e sinto uma responsabilidade enorme com isso. Às vezes, a melhor alternativa continua sendo o “Sem título” – e não vejo problema nisso, porque toda obra fala por si só – mas confesso que também fico feliz quando artistas que admiro escolhem um nome. Para mim, foi um processo de ganhar confiança e entender um pouco melhor sobre qual direção gostaria que aquele trabalho tomasse. O título fica sendo mais uma camada do trabalho, e na maioria das vezes é a parte mais difícil. Guardo uma lista de possíveis títulos num caderno, e consulto sempre que preciso. O caminho mais comum é o título ser a última etapa, mas normalmente é um processo bem orgânico. A maioria vem de versos de poemas, excertos de músicas, o que forma uma conexão com referências de outra mídia de um jeito não explícito, mais sutil e, para mim, mais interessante. Tudo com que eu me relaciono acaba nutrindo meu trabalho. Não escondo as referências mas, ao mesmo tempo, tirá-las do contexto original é algo que me interessa porque numa primeira vista dá a possibilidade daquelas palavras serem lidas de um jeito novo. Isso pra mim é brincar um pouco com a linguagem. Por exemplo, “I wanna belong to the living” vem da Joni Mitchell, “Minha impossível memória” é um verso de um poema da Alejandra Pizarnik, e “I know that imagining my man” é o nome de uma música da Aldous Harding. Acaba também sendo uma forma de eu me relacionar com essas outras artistas.
De cara, quando descobri você no Instagram, me apaixonei pela sensação de intimidade de suas obras, algo muito difícil de atingir. Os hipercloses de sua estética figurativa talvez tenham a ver com essa sensação. Foi um objetivo buscado? No trabalho de um artista tudo é processo, construção, refinamento. Muitas vezes é difícil saber o que foi um objetivo racionalmente estabelecido, ou o que foi uma consequência “natural”, ou intuitiva, do crescimento do trabalho, talvez porque as duas coisas andem juntas. Há bastante tempo entendi que a intimidade me interessa porque carrega muitas complexidades e nuances, e a partir do momento em que se estabelece um assunto, ele se desdobra em outros mil. Existem várias formas de se tratar a intimidade numa imagem, e procuro fazer isso sem ser óbvia demais, sem tantos estereótipos. Me interessa uma certa ambiguidade nas figuras, um deslocamento do ponto de vista, pra se questionar sobre o que está naquela imagem. Os hipercloses foram um jeito que encontrei de trabalhar imagens pessoais e cotidianas permitindo um estranhamento – e, portanto, uma nova visão – daquilo que estamos habituados a ver. Mas creio que o conjunto mais ampliado do trabalho é que ajuda a dar esse tom.
Tenho também a impressão de que muitas de suas obras retratam amigos, cenas do cotidiano... Por onde você começa? Parto sempre de fotografias como referência para o que vou pintar ou desenhar. Me considero muito pouco metódica no processo de feitura da imagem: não costumo fazer desenhos, esquemas, rascunhos, nem uso Photoshop para manipular a imagem. São fotos tiradas de celular (às vezes posadas para pintar e às vezes não) mas na maioria bastante banais, que vão sendo transformadas no próprio processo da pintura. Por esse motivo, muitas vezes acabo pintando amigos, conhecidos, pessoas com quem me relaciono. No início, era importante para mim esta primeira conexão pessoal com aquelas imagens, já que me fazia engajar emocionalmente com o processo de um jeito que me interessava. Com o tempo, fui me distanciando disso. Hoje em dia ainda pinto essas mesmas pessoas, mas sem me preocupar com retratá-las: o que me interessa é a imagem, sua composição, as cores, textura, camadas, equilíbrio, o processo de construção da pintura. Depois de um determinado momento, procuro me distanciar da referência porque é fácil se perder buscando verossimilhança. Quero que meu processo seja cada vez mais livre.
Fale um pouco de sua técnica. Quanto tempo demora para finalizar um quadro? Gosta de ouvir música pintando? É muito reservada, ou gosta de interagir com modelos? Precisa de silêncio absoluto? O processo da pintura me fascina completamente! Tem um tempo próprio, uma sabedoria, e a gente vai aprendendo a escutar o que ela diz. Cada obra tem um tempo único, algumas ficam prontas em poucas horas, outras em meses. No geral, o tamanho costuma influenciar diretamente nesse aspecto, mas não é uma regra. Às vezes a mágica simplesmente acontece com muito pouco, e às vezes você fica lá trabalhando noite e dia e simplesmente não funciona. É aí que entra a experiência e a escuta para decifrar o que precisa ser trabalhado e, principalmente, quando parar. Mas costumo trabalhar consideravelmente rápido quando me sinto à vontade: dias ou poucas semanas. Só preciso de mais tempo (alguns meses) para as pinturas muito grandes, de dois metros, ou quando o projeto é mais complexo, como a ilustração de um livro, uma encomenda – no geral, trabalhos em que existe uma demanda. É preciso entrar na pintura, no processo do trabalho, e isso pra mim pede concentração e introspecção. Costumo ouvir bastante música para entrar nesse clima e me manter nele, e quando estou imersa, no ritmo, e posso ter a atenção um pouco menos ativa, aprendi a ser mais multifuncional e ouvir um podcast. Ainda assim, tem vezes que só o silêncio salva, porque enquanto pinto a cabeça entra num caldeirão e preciso até parar pra respirar um pouco.
Recentemente você expôs em uma coletiva e também na SP-Arte. Como foram essas expos? Muito se fala sobre exposições individuais, que inegavelmente são necessárias e relevantes na trajetória de um artista, mas a alegria e o valor de expor numa coletiva são únicos. Essa coletiva, A Bruma dos Dias, foi pensada do zero com muito carinho, comigo e os artistas Rafael Hayashi e Kaori Nagata, e com curadoria e acompanhamento da Julia Cavazzini, que virou uma amiga. Ter a oportunidade de criar e colaborar com outros artistas e profissionais da arte me mobiliza muito, porque é uma profissão que tem muitas camadas de solidão e tem uma cultura implícita de muita competição, ego e individualismo. Tenho valorizado cada oportunidade de me juntar a outras pessoas em quem acredito e usar nossos esforços coletivos pra se ajudar e, com sorte, se divertir no processo. Só se aprende na troca! Já as feiras de arte são outra história, têm outro propósito e relação com o artista. Ainda mais se tratando da SP-Arte, que é a principal feira da América Latina, é indiscutível o peso de estar presente nela. Sou muito grata, me sinto orgulhosa de ter estado lá, e foi ótimo, mas não é um ambiente confortável para os artistas. As feiras são feitas para os compradores, colecionadores, pessoas que fazem parte de um universo muito diferente da maioria das pessoas que estão expondo ali. Ainda assim, faz parte do trabalho, e gosto de ir, conhecer as pessoas do meio, os clientes, mas pode ser uma relação conflituosa. A parte social dessa profissão, e o networking, são fundamentais como na maioria das outras profissões mais “convencionais”, mas acho que pode ser complexo entender e se habituar ao mercado de arte, a relação com o dinheiro, com o sistema, e as disparidades que vamos encontrando quando entendemos que somos a base desse jogo e, ao mesmo tempo, reféns dele.
Quais são seus projetos? Estou trabalhando nas ilustrações de um livro incrível, que ainda não posso comentar. Fora isso, tem algumas exposições coletivas nos próximos meses a serem confirmadas, mas quero poder trabalhar em projetos pessoais para editais e institucionalizar meu trabalho.
E quais suas influências e inspirações, como artista? A primeira paixão que eu tive, que me conduziu ao universo da arte, e resultou na minha formação como artista visual, foi o cinema. Logo fui entendendo que as influências vêm de todos os cantos, do cinema, a poesia, a música, a psicanálise, até meu próprio entorno, minhas relações pessoais, minha ancestralidade. Mas sei que você quer uns nomes, então vou te dar alguns: de cabeça, sou completamente apaixonada pela Mira Schendel, Paula Rego, William Kentridge, Regina Parra, Kiki Smith, Sophie Calle, Joanna Piotrowska, mas tem também o Manet e o Bonnard, que são meus príncipes da pintura. Não tem muitos nomes aqui, mas a arte contemporânea me fascina completamente. No cinema tem o Wim Wenders e o Ingmar Bergman, mas também outres contemporâneos um pouco menos cult. Na poesia tem a Tamara Kamenszain, Cecília Pavón, Marília Garcia, Mariana Godoy, nomes infinitos. No geral, me acho muito privilegiada por poder ter acesso à produção cultural contemporânea, acho tudo muito sensacional, e tenho procurado prestigiar e acompanhar mais o trabalho de outras mulheres. Agora, definir arte é uma tarefa sem fim, ingrata, e acho que é por ser indefinível que é arte. Arte pra mim tem algo do deslocamento, da torção na experiência sensível que é incapturável mas imprescindível pra vida e a experiência humana. Não me vejo fazendo outra coisa ou vivendo de outro jeito!
Quer ver as obras de Nina Horikawa impressas em papel perfeito? Procure a edição de outono da revista Morel. Tiragem limitada.
Poeta vertical
Uma leitura dos poemas de Leonardo Gandolfi
“Poesia não passa de prosa interrompida por teclas Enter”, definiu uma aluna, durante uma discussão sobre o que é poesia. “Eu sinceramente de poesia não saco lhufas”, revelou um amigo, como se poesia fosse algo tão inalcançável quanto uma fórmula matemática ou uma peça de Wagner (às vezes é mesmo). “Eu não sei identificar quando é poesia boa e quando é poesia ruim”, um terceiro me confessou, numa livraria, atônito entre tantos lançamentos de livros de poemas.
Devo dizer que: sim, às vezes é difícil separar o joio do trigo, o fato do fake, o mel do melífluo; como em tudo na vida, precisa prática. Há um poema de João Cabral de Melo Neto que aproxima o ofício da poesia do ofício de escolher feijões: “Catar feijão se limita com escrever;/ jogam-se os grãos na água do alguidar/ e as palavras na folha de papel;/ e depois, joga-se fora o que boiar” (Educação pela Pedra).
É impressionante a quantidade de ideias condensada neste quarteto cabralino. Existe a comparação entre uma atividade (rotineira e doméstica) como separar grãos de feijão gostosos dos carunchados à arte (supostamente elevada) da escrita. Existe a ideia de que escrever é separar as palavras adequadas das indevidas; uma ideia que pressupõe repertório, técnica, intuição, ouvido e olvido (sim, lembrar se limita com esquecer).
Existe a ideia de que se deve jogar fora “o que boiar”, ou seja, o que não tiver substância, o que for vazio. Existe a ideia de que escrever requer trabalho, e não inspiração divina. Existem rimas toantes (só as tônicas rimam, como ‘escrever’ e ‘papel’) e rimas soantes (‘alguidar’ e ‘boiar’) que são ao mesmo tempo rimas ricas (em que classes gramaticais diferentes ressoam, pois aqui um substantivo concreto flerta com um verbo), e essa ideia pressupõe que o autor se preocupa tanto com a forma quanto com o conteúdo, mas também não quer chamar atenção demais para a forma. Existe uma busca de usar substantivos concretos para oferecer um conceito abstrato, como se faz em um ensaio. E inexiste um eu-lírico óbvio, pois o poema não é confessional, embora trate do fazer de Cabral, poeta obsessivo e rigoroso.
Só por essas poucas ideias, recolhidas como bons feijões, confirmamos: poesia é a maior quantidade possível de ideias condensada no mínimo possível de palavras (Ezra Pound). Poucazideia, no dizer periférico: direto ao ponto, no osso, papo reto. Seja preciso, seja denso.
Então também devo dizer que: sim, às vezes poesia é algo que sinceramente não entendemos, e que, por isso mesmo, gostamos. Quem disse que tudo o que é racional e justificável deve ser gostável, deliciável? Nem por isso rechaçamos a boa poesia feito feijão carunchado.
Então devo dizer que: sim, às vezes a boa poesia pode parecer prosa interrompida por teclas Enter. Veja o próprio João Cabral: “Catar feijão se limita com escrever; jogam-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar”. Tem uma investigação de metros, ecos, ritmos e outras sonoridades dentro de uma frase prosaica. Tem a ideia de que se pode desentranhar algo precioso de dentro de uma realidade mesquinha.
Alguém já disse (se alguém lembrar, avisa?) que o poema é um texto que começa seu percurso em uma margem mas não consegue chegar na outra margem da página – como um nadador que se afoga antes de chegar à outra ponta da piscina, e este fracasso em si é poético. Talvez, neste fracasso em não conseguir atingir a outra margem, ele acabe atingindo uma terceira margem – um espaço fora do espaço, um tempo fora do tempo, como a canoa do pai em “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa.
Alguém já disse (também não lembro quem) que poesia não se resume. Você pode resumir um romance, um conto, uma crônica, um ensaio, uma série, uma novela, um filme. Mas não pode dar um spoiler ou um trailer de um poema. Um poema é a própria coisa coisada: sua forma (significante) em si já quer dizer alguma coisa (significado).
Poesia não é sobre isso.
Poesia é.
E por que toda essa enrolação pra falar do novo livro de Leonardo Gandolfi, Pote de Mel e Outros Poemas (Editora 34)? Porque Leo é o rei de dar Enter no meio da conversa. Veja este:
Bares
Já era tarde
quando
a grande porta de metal
baixou
mas nossos corações
resistiram
abertos
vagando pela noite
em busca
de outros corações e portas
prestes a fechar
Por que Leo não escreveu simplesmente assim, sem nem precisar de vírgulas, à Cormac McCarthy?
“Já era tarde quando a grande porta de metal baixou mas nossos corações resistiram abertos vagando pela noite em busca de outros corações e portas prestes a fechar.”
A cena é a mesma, né? Mas o efeito não. Tem o ritmo. As pausas que vão esburacando a prosa por dentro. Como se fosse algo pensado com paciência, devagar e meio que sussurrando. Afinal, é sussurrando que se comunica uma intimidade - o cerne da poesia de Gandolfi.
Uma poesia em tom menor.
Não só no sentido da pequena extensão de cada poema. Não só pelo fato de objetos minúsculos serem protagonistas de todo o livro. Começando pela “maçaneta da porta” do primeiro poema à última palavra do livro, “coisinha”, passando por folhas, jabuticabas, tampinhas das pastas de dente, caracóis, grãos de arroz, cavaquinhos, figos, baratas.
Mas no sentido da musicalidade. É poesia pra ser ouvida mais em si bemol menor do que em dó maior. E música também é pausa. As pausas entre verso e outro deixam sublinhadas as rimas internas que reverberam no interior da frase prosaica, como as soantes “quando”, e “vagando“ e “metal“ e “fechar”.
O recurso ao enjambement – o encadeamento de versos, tão típico em João Cabral – é estruturante desta poesia, visto em poemas anteriores, como este que adoro, de Robinson Crusoé e Seus Amigos:
Leonard Cohen em 2013
Eu estava ali nos bastidores
com o pessoal da banda
e a gente conversava
sobre as várias fases
pelas quais um homem passa
ao longo da vida
em relação ao efeito que causa nas moças
O tipo de coisa
que a gente que é velho
diz enquanto toma café
Começa assim
primeiro você é irresistível
depois você fica resistível
Em seguida você passa
a ser transparente
não invisível
mas como se só pudesse ser visto
através de plástico velho
Daí então você fica invisível
e quando tudo parece de bom tamanho
eis a mais incrível das mudanças
de invisível você passa a ser repulsivo
Mas não é assim que a história acaba
porque depois de repulsivo
você se torna bonitinho
É nessa fase em que me encontro agora
meus amigos
Como em “Bares”, neste as rimas internas toantes ficam mais à vista pela separação em versos (“conversava”, “fases”, “passa”; “invisível”, “repulsivo”, “bonitinho”). Como outros poemas de Leo, esse é um object trouvé, ou seja, um objeto achado, um ready-made, um já-pronto. Reproduz ipsis litteris uma fala de Cohen durante um de seus últimos shows. Mas se reproduz, se copia, como pode ser poesia?
O gesto de retirar um objeto de lugar – a fala de Cohen em um show – e colocá-lo em outro – um poema – já em si é um gesto poético. Como fazia Marcel Duchamp ao tirar um urinol de um banheiro e colocá-lo em uma galeria. Como Manuel Bandeira ao desentranhar poesia do cotidiano, 100 anos atrás:
Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia
num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Como nesses poemas anteriores de Gandolfi, há também um desfecho imprevisto, que tende tanto ao humor, como no poema do Cohen, quanto ao susto, como no poema dos bares. Este poema de Bandeira – um dos mais influentes deste século pra cá – nasceu de uma nota roubada do Beira-Mar (link abaixo). Perceber que há no prosaico um assombro, um escape na direção do lírico, uma fratura que deixa escapar a luz – este é também o trabalho do poeta. Como alguém que encontra mel onde só havia cacarecos. Como neste outro poema do Pote:
Máquina de escrever
Ronaldo diz que tem
uma máquina de escrever mágica
já tinha sido minha
quando eu era criança ele diz
depois acabou ficando
pelo caminho
eu digo que sim
que muitas coisas ficam
pelo caminho
daí ele diz que reeoncontrou
a máquina de escrever
numa feira de antiguidades
reconheci que era
minha máquina de escrever ele diz
meu nome estava escrito nela
da mesma maneira
que eu tinha escrito nela
quarenta anos atrás
pergunto se a máquina
de escrever é mágica só porque
foi reencontrada tanto tempo depois
não ele responde
ela é mágica porque se eu escrever
o nome dos mortos eles vêm até mim
O poema reconstrói uma conversa em que um personagem revela ter uma máquina de escrever mágica: o objeto desapareceu e reapareceu quarenta anos depois, numa feira de antiguidades. O poeta pergunta ao personagem se ela é mágica por este reaparecimento, ao que o personagem responde que ela é mágica pois tem o condão de conjurar as vozes dos mortos (e alguns vivos).
Como no poema de Bandeira, o poema de Leo traz personagens, espaço, tempo. Daí se limitarem com a prosa de ficção. Alguns são verdadeiros microcontos, diluindo as fronteiras entre prosa e poesia. E o sentido de um “fecho de ouro”, de um último verso que traz uma punch line, uma abertura ou um relâmpago, também é um recurso em comum com a ficção breve.
O desfecho misterioso, imprevisto como nos demais poemas, aponta para outro marca de Gandolfi. A estética de apropriação, em que o autor sampleia falas, anedotas, textos e biografemas de outrem. Menos interessado em fazer confessionalismos egocentrados, e mais atentos em observar o que está do lado de fora, seus poemas são metonímias de outras figuras, recuperam traços e personalidades através de vestígios. Como se ao escrever os nomes dos mortos eles viessem até nós. “Somos/ flechas sem alvo/ às vezes atingimos/ em cheio os nossos vivos”, falam os mortos em outro poema.
Como o poeta Li Bai (“Li Bai/ mergulha no rio/ para agarrar/ o reflexo da lua/ e se afoga”), Bob Dylan (“Vou fazer com este cacto/ o mesmo que fiz/ com Whitman/ deixá-lo sem água/ até que seque”), Nelson Cavaquinho (“Deito na cama contra a parede/ do lado do meu cavaquinho/ e sonho que vou morrer/ às três da manhã”), Antonio Marcos Pereira (“Na porta do prédio/ toquei o interfone/ do apartamento/ de Mario Levrero/ ele não atendeu/ tinha morrido/ há alguns anos/ eu sabia disso/ mesmo assim/ continuei tocando/ vai que ele atende”), Nonato Gurgel (“Meu amigo Nonato/ escrevia/ com a borracha/ até hoje não sei/ como ele apagou/ mais poemas/ do que escreveu”), Paulinho da Viola (“Este lápis escreve/ ao mesmo tempo/ em dois passados/ um que não terminou/ e outro que ainda/ está para começar”), Matisse, Murilo Rubião, Buñuel, John Cage, Saygio, Basho, Joey Ramone e muitos outros, entre mortos e vivos. Tantas vozes ressuscitadas são arquivos voltando à luz, afinal.
Existe uma espécie de dissolução do eu-poético nessa barafunda de vozes convocadas do mundo dos mortos. Como se um poema fosse parido não por um único autor e sim por uma fraternidade, um sentimento implícito em Robinson Crusoé e Seus Amigos desde o título: mesmo solitário, o náufrago tece sua rede de afinidades eletivas. O que nos leva de novo à metáfora do naufrágio enquanto símbolo da impossibilidade de o verso atingir a outra margem da página.
O fato de todos os poemas terem versos tão curtinhos e encadeados, como uma longa narrativa recheada de reticências intimistas, traz três sensações distintas. A primeira, já assinalada em livros anteriores de Gandolfi, é a de lusco-fusco, como se as palavras se acendessem e se apagassem – uma “pilha fraca” os ilumina, no dizer do poeta Alberto Pucheu: somos guiados não por um clarão forte, mas por uma eletricidade bruxuleante, ambígua, às vezes meio perdida. A segunda sensação é de integridade: um livro coerente com seu projeto, do início ao fim. E a terceira sensação é dada por seu visual vertical. Estamos caindo ou subindo? Há ares rarefeitos e também profundezas neste percurso; há poemas que culminam em riso (como aquele do Cohen), há os que desfecham em sombra (como o da máquina de escrever).
Falar nisso… sim, a máquina de escrever é minha, e tudo o que Gandolfi diz no poema eu contei a ele numa noite de pilha fraca (não necessariamente naquela ordem). Revelo o engenho por trás da máquina só pra sublinhar a habilidade de escuta deste poeta atento - que cuida muito bem, com discrição e elegância, do que está ao seu redor.
Inteligência Acidental
Quer escrever ficções breves contra e com o uso das IAs? Venha para minha oficina de escrita Inteligência Acidental, que começa em maio, às segundas, em seis encontros entre as 20h e 23h, via Meet e Wordpress; me escreva em ronaldobressane@gmail.com.
#pilhadeleiturasperdidas
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Kafka em Quatro Retratos-Relâmpago, de Walter Benjamin
Trad., posfácio e notas de Gustavo de Carvalho, 100/Cabeças
Cem anos após sua morte, Franz Kafka permanece central para nossa percepção dos mistérios e segredos de um mundo absurdo. Esta nova joia da 100/Cabeças, ilustrada por António Gonçalves, traz quatro pequenos ensaios de um dos mais importantes críticos e filósofos do século 20, escritos a quente. Guardadas as diferenças, Benjamin lendo Kafka é como Antonio Candido lendo Clarice e Rosa: um guia ao mesmo tempo honesto, rigoroso e apaixonado. Exilado em Paris, Benjamin planejava um ciclo de leituras reunindo Kafka, Brecht e Kraus, mas vivia os tempos difíceis do nazismo e não conseguiu. O resultado são estes ensaios escritos com as costumeiras clareza e generosidade. Defende a amizade de Max Brod, que recusou-se a queimar os escritos de Kafka; faz uma chave de interpretação da teologia kafkiana à luz de Lao-Tsé, do Talmud e de Cervantes; desenha um panorama de sua obra, por ocasião dos dez anos da morte; e resenha a bio escrita por Brod. Cem anos depois, este livro vale como uma introdução a Kafka.
2
Desaparecer, de Maria Stepánova
Trad. Irineu Franco Perpétuo, Poente
Quem nunca sonhou em fugir com o circo? Dissolver sua identidade em um carrossel nômade é a premissa deste precioso romance. Desde Em Memória da Memória que fiquei fã desta russa de 52 anos, também poeta e jornalista. Bem mais enxuto que seu livro anterior também trazido pela Poente, em Desaparecer seguimos M., uma escritora cinquentona que parte para um evento literário em um país estrangeiro e que, depois de uma série de trapalhadas e burocracias, acaba tendo a chance de trabalhar como figurante em uma trupe de circo, sumindo como em um passe de mágica. Durante sua jornada, questiona sua identidade e sua relação com a língua materna, marcada pela destruição e morte associadas à guerra: ela chama a Rússia de “a besta”, associando-a à devastação produzida na Ucrânia (sem nomear os países, porém). Mesmo que menos reflexivo e ensaístico do que Em Memória da Memória, mais calcado na narrativa pura, este intrigante livrinho nos convida a refletir sobre o desejo de desaparecer, física e emocionalmente, como forma de escapar das amarras do passado e da realidade opressiva.
1
A Língua Nômade, de Diogo Cardoso, Círculo de Poemas
Esta plaquete é uma imersão delicada no território movediço da linguagem. Da mesma leva dos poemas que saíram na Morel 14 - “Antes de Nakhba”, “Gênesis” e “Necrológio” - , aqui há 20 poemas em que o jovem poeta de São Bernoia nos convida a acompanhar o fluxo errante das palavras, que se desprendem de amarras fixas e ganham vida própria. Tradutor de Mohammed Mbougar Saar e estudioso do surrealismo, Cardoso é adicto das imagens surpreendentes e febris, com uma dicção por vezes política, por vezes lírica. A poesia de Cardoso não se prende a formas tradicionais, mas encontra sua musicalidade em um ritmo próprio, entre o sinuoso e o abrupto, refletindo a natureza instável do ser e do mundo. As imagens evocadas são vívidas, sensoriais, e nos transportam para paisagens internas e externas em constante transformação. Desde o título somos confrontados com a ideia de uma língua que não se estabelece, transitando entre espaços e sentidos. E é justo essa sensação de movimento perene que permeia os poemas, como que em recusa à estagnação. Mesmo o corpo refuta um único lugar e, na busca pelo outro, encontra a metamorfose:
Felicidade
esta noite eu tive um sonho
seu corpo saía do meu
como uma cadela ressurrecta
saía de mim como um rabo
feliz em minha inocência canina
saía como quatro patas ciscando
chão de areia fixa
fora de mim, velava meu corpo
(onde eu estava?)
teu nome não me dizia nada
o seu latido guardava o meu em segredo
o cio a deixava inquieta
suspensa entre quatro dentes
meu corpo - uma massa fixa
sem qualquer resposta
um sonho apenas
você sorria de rabo solto
sentada na relva feito quem
abro os olhos
corpo ausente
continuo rindo - desperto -
rabo solto sem relva
Links pra não cortar o barato da leitura
Beira-Mar, edição 74, dezembro de 1925, sob o título “Terá sido suicídio?”
Pote de Mel e Outros Poemas, de Leonardo Gandolfi
Kafka em Quatro Retratos-Relâmpago, de Walter Benjamin
Desaparecer, de Maria Stepánova
A Língua Nômade, de Diogo Cardoso
Morel 15, edição Outono (Ipsis)
Gracias pela leitura!
Abraços,
Ronaldo Bressane
Sensacional essa resenha do Gandolfi.